Brigadistas indígenas unem-se à tecnologia geoespacial para combater incêndios na era das mudanças climáticas

Oficinas de compartilhamento de conhecimento oferecem habilidades, oportunidades e um caminho para proteger suas casas de incêndios florestais

Brigadista Terena Neudines Felix da Brigada Taunay Ipegue, Aquiduana, Pantanal, Mato Grosso do Sul.

foto de Alicce Rodrigues/Instituto Terra Brasilis

Acknowledgements
Este projeto foi financiado em parte pela Fundação Gordon e Betty Moore e pela Fundação Charles Stewart Mott. Além disso, este projeto conta com apoio parcial, tanto financeiro quanto voluntário, da Google.org.

Setembro de 2025 — Nas margens do Lago Caracaranã, no interior do estado brasileiro de Roraima, um grupo de brigadistas indígenas se reúne em torno de mapas impressos em papel. Elas vieram a este ponto de encontro à beira do lago desde seus territórios em todo o estado, e até de outros estados, para aprender sobre mapas com o Dr. Ray Pinheiro Alves, analista de pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Alves direciona cada brigadista para um mapa de seu território, completamente sem rótulos. Ele distribui materiais de desenho e, em poucos instantes, as brigadistas já estão perfeitamente orientadas no mapa, traçando de memória rios conhecidos, locais de moradia e pontos de referência.

Roraima é o estado mais ao norte do Brasil. Ele atravessa o Equador e abriga desde vastos campos como os que cercam o lago Caracaranã até trechos montanhosos e enevoados de floresta Amazônica. É uma região remota e, por vezes, desconectada do restante do país, mas que sofre com as mesmas pressões da expansão da agricultura e do garimpo ilegal, além do mesmo aumento de fogos destrutivos que frequentemente acompanham o processo de desmatamento. É por isso que as brigadas indígenas aqui estão ansiosas para adotar novas ferramentas que possam ajudá-las a manejar e proteger suas florestas e lares.

Research area

mapa por Christina Shintani

Alves acredita que os mapas devem ser uma dessas ferramentas. Ele, juntamente com a pesquisadora do Woodwell Climate, Dra. Manoela Machado, tem liderado uma série de workshops desenvolvidos para ajudar brigadistas indígenas a desenvolverem habilidades em cartografia e sistemas de informações geográficas (SIG). O domínio das ferramentas de SIG permite que brigadistas façam uso de dados para orientar decisões sobre o manejo de fogo, tanto durante quanto fora da temporada de queimadas — atividades que se tornarão cada vez mais essenciais à medida que o clima esquenta e os incêndios se tornam mais prevalentes e difíceis de controlar.

Brigades present their hand-drawn maps during the workshop's mapmaking session. / photos by Sara Leal Pereira/IPAM

Durante a sessão de cartografia da oficina, as brigadas apresentam seus mapas desenhados à mão.

fotos de Sara Leal Pereira/IPAM

A paisagem ardente do Brasil

Deveria estar chovendo em Roraima agora, mas o inverno tem sido seco este ano. As mudanças climáticas têm prolongado as estações secas em muitas regiões do país, aumentando o período em que os ecossistemas ficam propensos ao fogo.

Na Amazônia, o fogo é provocado intencionalmente como parte do processo de desmatamento. Grileiros usam o fogo para limpar a vegetação acumulada após a derrubada, abrindo espaço para as pastagens, que mais tarde serão convertidas em lavouras. Com as mudanças climáticas, esse fogo tem mais chance de escapar para florestas mais secas e enfraquecidas ao redor. Mais ao centro do Brasil, os ecossistemas de savana e áreas úmidas sazonais do Cerrado e do Pantanal coevoluíram com níveis variados de frequência e intensidade de fogo. Mas a seca prolongada e o aumento das temperaturas transformaram as temporadas de fogo em temporadas de crise.

Comunidades indígenas em todo o Brasil usam o fogo há milênios, trabalhando com o ecossistema para promover espécies culturalmente importantes. Com as mudanças climáticas prolongando as temporadas de fogo, os calendários tradicionais também estão mudando, já que o período disponível para queimadas seguras diminui. As comunidades também estão enfrentando invasões em seus territórios por incêndios descontrolados iniciados em fazendas vizinhas.

Fire in Chapada dos Guimarães in Mato Grosso, adjacent southwest to Tocantins. / photo by Manoela Machado

Fire in Chapada dos Guimarães in Mato Grosso, adjacent southwest to Tocantins.

photo by Manoela Machado

O mundo teve um vislumbre da dimensão da crise em 2019, quando, durante um verão já recordista em incêndios, grileiros na Amazônia atearam tantos focos em um único dia que a fumaça percorreu centenas de quilômetros e chegou a encobrir a cidade de São Paulo.

“O céu em São Paulo escureceu às 15h. E então o mundo começou a prestar atenção ao fogo na Amazônia”, diz Machado. Proteger as florestas do Brasil dos incêndios, especialmente Amazônia, rica em carbono, tornou-se uma prioridade muito maior para a comunidade internacional.

O Brasil tem um amplo sistema de combate a incêndios florestais, composto por brigadas oficiais e voluntárias, apoiadas por vários órgãos governamentais para operar em terras privadas, áreas públicas protegidas e Territórios Indígenas. Em meio à crescente urgência de conter incêndios, Machado estava interessada em entender o que brigadas de diferentes níveis de jurisdição poderiam precisar para serem mais eficazes durante os meses de crise. Ela própria tem ampla experiência em análise geoespacial e se perguntou se organizações como Woodwell Climate e IPAM poderiam ajudar fornecendo dados sobre terreno, padrões climáticos, tipo de vegetação e outras informações relevantes para o campo.

Então, Machado e a cientista sênior Dra. Marcia Macedo conduziram uma avaliação das necessidades do sistema de combate a incêndios para identificar quais análises poderiam ser mais úteis.

“A resposta variava um pouco, dependendo de com quem estávamos falando”, diz Macedo. “Mas quando falamos com os brigadistas indígenas, uma das coisas que surgiu de imediato não foi apenas um desejo por dados espaciais, mas por treinamento em análise espacial. Eles queriam poder trabalhar com os dados da mesma forma que nós.”

Duas maneiras de conhecer a terra

Para as comunidades indígenas do Brasil, os mapas não são necessários para navegar em seus territórios da mesma forma que o Google Maps pode ser para alguém caminhando em terras desconhecidas.

“Os povos indígenas do Brasil têm um grande conhecimento dos seus territórios”, diz Alves. “Mostramos uma imagem e eles reconhecem algum rio ou algum marco. Eles veem isso imediatamente na visão de satélite.”

Em vez disso, os dados geoespaciais oferecem outra maneira de comunicar esse conhecimento inato da terra. Para  as brigadas indígenas com quem Machado e Macedo conversaram, a capacidade de usar as mesmas ferramentas de SIG que os cientistas usam, e de fazer mapas da mesma forma que um órgão governamental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) faria, é inestimável para que possam se representar e reivindicar seus interesses em espaços não indígenas.

“Poder fazer os próprios mapas pode fortalecer a autonomia para tomar decisões e [ajudar] nos diálogos sobre políticas públicas”, diz Alves.

Manoela Machado provides instruction to workshop participants learning how to use GIS. / photo by Sara Leal Pereira/IPAM

Manoela Machado ministra um workshop ensinando os participantes a usar o SIG (Sistema de Informação Geográfica).

foto de Sara Leal Pereira/IPAM

Machado trabalhou com Alves para desenvolver o conteúdo de uma série de workshops que ajudariam a ensinar os fundamentos de SIG a brigadistas de Territórios Indígenas em todo o Brasil. O primeiro foi realizado em Brasília em 2022, e outros três se seguiram desde então, sendo a turma de Roraima a mais recente.

Cada workshop começa pelo básico: latitude e longitude, hemisférios, projeções. Alves é um professor nato e faz uso de adereços, metáforas e atividades como desenhar em mapas impressos para tornar os conceitos mais tangíveis.

Nos dias seguintes, à medida que os participantes se familiarizam com o QGIS, um software gratuito de elaboração de mapas, Alves adapta as aulas às necessidades das comunidades presentes.

“Por exemplo, em uma aula estávamos apresentando mapas topográficos, e eles disseram ‘isso é muito, muito útil para nós’”, diz Alves. “Então mudamos o curso para resolver a questão com a qual eles estavam lidando.”

Ao final do curso, os participantes haviam criado mapas relevantes para seus territórios. Ver suas próprias casas representadas em forma de mapa, diz Machado, os conecta mais profundamente ao material.

“Dava para ver o orgulho no rosto delas”, diz Machado. “Elas reconhecem cada elemento daquele mapa porque foram elas que construíram. Elas tomaram cada decisão sobre o que mostrar no mapa.”

a woman in a yellow shirt points at a hand drawn map held up by manoela machado

A brigadista at the Roraima workshop presents her map.

photo by Sara Leal Pereira / IPAM

A brigada feminina

Ana Shelley Xerente, do povo Xerente, viu seu marido trabalhar na brigada oficial de seu território por 13 anos antes de decidir que também gostaria de experimentar. Ao longo dos anos criando seus dois filhos, ela observou mudanças ocorrendo no ecossistema nativo do Cerrado do território Xerente: temperaturas mais altas, córregos secando, mais incêndios.

“Hoje em dia, logo depois da chuva, já está praticamente seco”, diz Ana Shelley. “Tudo por causa das mudanças climáticas.”

Ela sentiu um forte dever de proteger o meio ambiente e disse ao marido que gostaria de trabalhar no Prevfogo, o braço de combate a incêndios do IBAMA, como ele.

“Ele vivia me provocando. “Não tem como você aguentar isso”, diz Ana Shelley. “Mas eu continuei falando sobre isso e ele teve a ideia de criar uma brigada  voluntária.”

As brigadas voluntárias apoiam as brigadas oficiais, inclusive no trabalho crítico de prevenção realizado fora do período de crise. Em 2021, atendendo ao interesse de Ana Shelley e de outras pessoas do território, o PREVFOGO e a FUNAI ofereceram apoio para criar uma brigada voluntária composta exclusivamente por mulheres,— a primeira no Brasil. Ana Shelley levava sua equipe de 29 mulheres de aldeia em aldeia, conversando com anciões, educando crianças, reflorestando margens de nascentes e discutindo como as mudanças climáticas têm afetado o calendário tradicional de queimadas culturais.

a womens brigade member shares a calendar with a community member

A brigada feminina de Xerente realiza ações de extensão comunitária junto aos membros da comunidade em seu território.

foto cortesia de Ana Shelly Xerente

“Temos nosso próprio calendário, feito pelos nossos anciões. Ele marca a estação chuvosa e a estação seca, quando a queimada não é permitida. Então, percorremos todo o território, conversando com as pessoas sobre o que o fogo traz, o impacto que ele tem sobre humanos e animais, e houve uma redução significativa [nos incêndios]”, diz Ana Shelley.

Ana Shelley começou a se destacar como líder entre as voluntárias. Em 2024, quando seu marido deixou o cargo de presidente da brigada oficial Xerente para trabalhar na FUNAI, ela foi convidada a substituí-lo pelo restante do mandato dele. No início de 2025, ela foi nomeada presidente para seu próprio mandato de quatro anos e assumiu com entusiasmo a responsabilidade de organizar as atividades de 74 brigadistas indígenas, homens e mulheres.

“Tudo é novo para mim, ser chefe de brigada. E como na nossa comunidade são, na maioria, os homens que tomam as decisões, isso causa um impacto, porque agora a chefe é uma mulher, então é tudo novo para eles também”, diz Ana Shelley. “Eu aprendo muito com eles e compartilho com eles o que eu sei. Tenho certeza de que vai ser desafiador, mas também sei que vai trazer muitos bons resultados.”

a group of women stand on a mountain trail smiling at the camera

Ana Shelley Xerente (ao centro) posa para uma selfie com seus colegas da brigada.

foto courtesia de Ana Shelley Xerente

Representação em sala de aula

O segundo workshop de SIG foi realizado no território de Ana Shelley, no Tocantins, mas apenas seu marido participou do curso. De fato, em certo momento do workshop, Machado olhou ao redor e se perguntou por que, em um território com uma brigada de mulheres motivadas, ela era a única mulher na sala de aula.

Apesar de não estarem em operação há tanto tempo quanto as brigadas masculinas, as brigadistas estavam ansiosas para atuar no mesmo nível. Talvez, pensou Machado, os workshops pudessem ser uma oportunidade para nivelar o campo de atuação.

Ela sugeriu organizar um treinamento exclusivo para mulheres, incentivando sua a participação e dando às elas a oportunidade de aprender ao lado de outras mulheres com experiências semelhantes. A primeira ocorreu no Maranhão, em junho, seguida pela de Roraima.

Macedo afirma que esse tipo de representatividade entre pares é essencial para o sucesso de iniciativas de compartilhamento de capacidade como este.

“O ensino entre pares e a troca de conhecimento entre pessoas que vivem a mesma realidade são quase sempre mais eficazes do que nós, cientistas, em pé na frente [de uma turma]”, diz Macedo.

a young woman in a yellow jumpsuit and a headdress of blue and red macaw feathers presents at the workshop in Roraima

Uma jovem participante das sessões de comunicação do workshop de 2025 faz uma apresentação durante as considerações finais.

foto de Sara Leal Pereira / IPAM

As brigadistas de Roraima são o resultado claro da representatividade feminina em brigadas, que começou no Tocantins com Ana Shelley e agora se espalhou pelo país. Roraima foi o primeiro estado brasileiro a formalizar brigadas exclusivamente femininas com a Brigada Pataxibas — um coletivo multiterritorial de mulheres combatentes. Durante a cerimônia de encerramento da oficina em Roraima, uma Tuxaua, ou anciã da comunidade reconhecida por sua sabedoria, chamada Azila, destacou a coragem das mulheres ali reunidas, que haviam alcançado coisas que ela mesma nunca tivera a oportunidade de fazer em sua juventude.

A participação nas brigadas também começou a abrir portas para as mulheres para além de seus territórios.

“Algumas se tornaram professoras, outras estão na faculdade. Ampliou seus horizontes delas. “Inspiramos muitas mulheres em todo o Brasil”, diz Ana Shelley.

Segundo Machado, o treinamento em SIG oferece a todos os participantes, homens e mulheres, a oportunidade de contar suas próprias histórias em seus próprios termos.

“Mapas contam histórias”, diz Machado. “Portanto, a importância de todos os membros da comunidade poderem construir seus próprios mapas é que isso lhes permite controlar a narrativa. Eles controlam como sua história é contada, em vez de esperar que alguém faça um mapa e conte a história por eles.”

O futuro da gestão de incêndios

Por enquanto, os workshops são planejados e realizados de forma ad hoc, conforme o financiamento permite. Mas Macedo vê uma necessidade urgente de expansão. Quanto mais brigadas participam, mais cresce o entusiasmo pelo material.

“Se oferecêssemos um desses por mês durante um tempo, ainda não conseguiríamos atender à demanda”, diz Macedo.

women and men in their brigade uniforms line up during the workshop in roraima

(Acima) Membros da brigada indígena uniformizados.

(Abaixo) O grupo de participantes do workshop de 2025 em Roraima.

fotos de Sara Leal Pereira / IPAM

Em algum momento, diz Macedo, o projeto terá que mudar para uma estratégia de “formar formadores”. A equipe imagina um modelo em que os participantes mais engajados do workshop sejam capacitados não apenas para fazer mapas, mas também para ensinar outras pessoas, expandindo esse conhecimento de forma mais ampla e rápida do que Alves, Machado e Macedo conseguiriam sozinhos. O acesso à tecnologia é outro limitador. Algumas comunidades indígenas têm computadores em sedes centrais, mas não é comum cada comunidade possuir o seu, e quase nenhum brigadista tem computador próprio. Mais laptops permitiriam que os participantes dos workshops continuassem praticando suas habilidades de forma autônoma.

As políticas no Brasil também começaram a mudar para abrir novas oportunidades. Em 2024, o país aprovou uma nova lei de Manejo Integrado do Fogo que exigirá maior coordenação entre diferentes jurisdições de brigadas para atividades de prevenção e combate, tanto no início quanto no meio da temporada de fogo. A lei dá ênfase à incorporação do conhecimento tradicional. Macedo diz que acredita que os workshops de SIG podem contribuir para esse movimento maior e ajudar a posicionar as comunidades indígenas como centrais nas políticas nacionais de manejo do fogo.

Quando Ana Shelley reflete sobre o quanto suas brigadas já conseguiram realizar e as possibilidades no horizonte, ela se mostra otimista.

“Eu vejo um futuro muito melhor.”

The cohort at the 2025 GIS workshop in Roraima
Author Sarah Ruiz